Depois de pular do sofá para comemorar o gol do Palmeiras, Paula Vieira, 40, bateu o pé no chão e sofreu uma fratura. Pensou que era um “trauma corriqueiro” e não quis ir ao pronto-socorro.
Tomou analgésicos, colocou gelo e esperou. Mas o pé direito começou a inchar e mudar de cor. “Lá fui eu para o começo do martírio. Sem imaginar que minha vida mudaria completamente”, conta a assistente social de Taboão da Serra (SP).
Isso porque a fratura, que ocorreu em junho de 2015, era mais séria do que pensou. “Pensava ‘por que eu não sinto minha perna, mas tenho dores? Por que meu pé não desincha e não melhora?’ Lá foram mais alguns dias de gesso e acompanhamento.”
Assim que retirou o gesso, 30 dias depois do ocorrido, Paula não sentia sua perna direita, do joelho para baixo, estava com uma paralisia no membro.
“Era uma dor indescritível. Quando tentava movimentar a perna, não conseguia. Tentava colocar no chão e ela não obedecia. E a dor que eu já não sabia mais classificar de forma alguma aumentava no mesmo ritmo do meu desespero.”
O diagnóstico de Paula era de distrofia simpática reflexa, responsável por causar o desconforto na perna, e também de dor neuropática —que tem relação com lesões nos nervos do sistema nervoso central ou periférico.
Ela passava horas procurando alguma terapia que pudesse ajudá-la no controle da dor. Ficou quase 2 anos sem conseguir andar sozinha. Controlava a dor, que sentia o dia inteiro, com remédios e fisioterapia: “Mas confesso que quase não adiantavam. Tinha dor 24 horas por dia, com diversas intensidades”.
Até que um dia encontrou um tratamento que poderia controlar as extenuantes dores que sentia. Pelos amigos, achou um médico que poderia dar mais informações sobre o tal aparelho, conhecido como estimulador medular.
“Após uma consulta esclarecedora, confortante, com todas as dúvidas pertinentes respondidas, saí eufórica do consultório. Em 13 meses, o que tive de desesperança, transformou-se em algo que desejei mais do que tudo nessa vida”, diz.
O que é o estimulador medular
De acordo com os médicos, o aparelho funciona da mesma forma que um marca-passo, dispositivo colocado no coração, com a diferença de que o estimulador medular fica em outra região que, neste caso, é a medula espinhal do paciente. O objetivo dele é auxiliar no tratamento de pacientes que sofrem com dores crônicas severas.
Segundo os especialistas, o aparelho é destinado a pessoas nas quais os tratamentos tradicionais não funcionaram, como quem passou por uma cirurgia na coluna, mas sem um bom resultado: não há melhora ou a dor na região piora.
Há também outras situações, como lesões do sistema nervoso, neuropatia diabética (degeneração dos nervos), hérnias, entre outros. Resumindo, são pacientes que sofrem tanto com a dor que isso passa a interferir na qualidade de vida deles.
“Não é uma cura, é mais um método de tratamento, embora alguns pacientes tenham respostas fantásticas a ponto de ficarem livres da dor”, explica Bernardo de Monaco, neurocirurgião funcional especializado em dor da CDF (Clínica de Dor e Funcional) em São Paulo, membro da SBENF (Sociedade Brasileira de Estereotaxia e Neurocirurgia Funcional) e da SBN (Sociedade Brasileira de Neurocirurgia).
Como o estimulador medular funciona
O aparelho é implantado no paciente, durante cirurgia, na medula espinhal. Ele consiste em uma bateria chamada de neurogerador ou neuroestimulador, que é conectada com um ou mais eletrodos. São eles que levam a corrente elétrica, a partir dos estímulos programados, até o sistema nervoso.
Desta forma, ele consegue “enganar” essa dor, bloqueando-a, segundo Eduardo Quaggio, neurocirurgião dos hospitais São Paulo e São Lucas, em Ribeirão Preto (SP). “Ele gera estímulos elétricos de baixa intensidade. Com isso, consegue enganar o sistema nervoso: o estímulo vindo dessa parte lesada é bloqueado pela estimulação elétrica do aparelho”, explica.
Depois que é implantado, o médico cria algumas programações para cada “tipo de dor” do paciente. Em casa, a pessoa pode ir escolhendo, a partir de um controle, o estímulo que precisa dependendo da dor que está sentindo no momento.
Quem usa diariamente explica como funciona: “Logo no começo, fizemos um teste e o aparelho tem a opção de gravar várias frequências. Ao lado do médico, testamos alguns estímulos e gravamos. Com o controle, posso mudar: se não estiver resolvendo a dor, troco para outro estímulo”, conta o auxiliar administrativo Vinicius Petrovich, 29, de Pitangueiras (SP).
O jovem passou três anos sofrendo de uma dor crônica, muito forte, devido a uma hérnia de disco lombar. “Sentia muita dor e já tinha feito diversos tratamentos com remédios, fisioterapias, e nada resolvia. Cheguei a fazer quatro cirurgias por causa da hérnia. Fiz implante com parafuso e pinos e não melhorei”, diz.
O caso mostra como o tratamento vem quase como uma “última opção”, quando nada mais resolve —depois dele, há o tratamento envolvendo a bomba de morfina, segundo Monaco. “Por usar morfina, um fármaco, pode gerar mais consequências”, explica o médico. Entre elas, estão a tolerância à substância e a abstinência quando suspende-se o uso.
Além do alívio das dores, outra vantagem do aparelho é a ausência dos efeitos colaterais comumente associados aos fortes medicamentos para a dor. Por isso, o estimulador medular vem como uma opção para retomar uma vida sem tanta dor —que foi exatamente o que aconteceu com Vinicius e Paula.
A vida com o estimulador
Ambos pacientes relatam que, após o implante do estimulador, a vida foi voltando ao normal: sem dor. No caso de Vinicius, a cirurgia ocorreu em 2018. Por pedido do convênio médico, fez um teste antes —as placas ficam implantadas na parte externa do corpo neste caso. “Assim que ligamos para ver a reação do estímulo, a dor cessou. Não tinha dor nenhuma”, conta.
Não conseguia acreditar. Vivia sem qualidade de vida, não conseguia trabalhar —fiquei afastado por 3 anos—, não tinha vida social, não conseguia nem dirigir.
Quando a cirurgia foi feita oficialmente, ainda em 2018, o auxiliar administrativo pode, então, voltar finalmente ao trabalho. Vive “tranquilamente” com o aparelho implantado, sem restrições ou quaisquer incômodos. “A parte importante é que não tenho mais nenhuma dor”.
Já no caso de Paula, o estimulador foi o instrumento para que ela pudesse voltar a andar. Claro, não foi de um dia para o outro, mas logo que fez a cirurgia, em 2016, as melhoras foram notadas. “Como o estimulador controla as dores, consegui movimentar minha perna novamente”, relembra.
“O estimulador medular devolveu minha alegria de viver. Agora a vida tem cor diferente. Para mim, tudo vale a pena. Tenho gratidão nas coisas mais pequenas que se possa presenciar ou acontecer.” (Paula Vieira)
A cada 6 meses, a assistente social passa com a equipe médica para analisar se está tudo certo com o aparelho. Continua tomando alguns medicamentos, fazendo reabilitação física e exercícios.
Segundo Arthur Lopes, neurocirurgião do Hospital Português de Recife, mesmo com o estimulador, é fundamental manter a reabilitação, além da atividade física, que é sempre benéfica para a saúde.
“As pessoas, às vezes, acham que é um milagre e, realmente, ajuda bastante, mas fisioterapia, reabilitação são sempre fundamentais também em situações como essas”, afirma.
Estudos mostram que o aparelho é eficaz Em um deles, uma revisão de diversos outros estudos e pesquisas, publicado em 2014 no periódico Neuromodulation, o resultado mostra que essa neuroestimulação para dores crônicas é segura e eficaz nas condições citadas nesta reportagem.
Um outro estudo, publicado na revista Pain Practice, demonstrou que reduzir o tempo de espera é fundamental para o sucesso do tratamento com o estimulador. Os resultados, publicados em 2014, mostraram que a taxa de sucesso do tratamento é de 75% para pacientes que esperaram menos de 2 anos pelo implante.
Os participantes que tiveram de esperar 20 anos após início da dor para colocar o implante apresentaram 15% de sucesso. Por isso, os pesquisadores reforçam que os médicos devem encaminhar esses casos precocemente a um especialista assim que a falha no tratamento se tornar aparente.
Como é o acesso no Brasil?
Mas essa questão esbarra em alguns problemas. A terapia deve ser realizada pelos convênios médicos, mas a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) tem diretrizes específicas para liberar o procedimento. O paciente deve:
– Ter diagnóstico de dor neuropática, ou seja, relacionada com lesões no sistema nervoso;
– Ter tratado o problema por pelo menos 6 meses, com fisioterapia e medicamentos, de forma contínua;
– Apresentar relatório médico e do fisioterapeuta mostrando que o tratamento não teve sucesso ou que teve apenas uma redução de 50% da dor, no escore Vas (escala que mede a dor da pessoa).
Pela rede pública, via SUS (Sistema Único de Saúde), o caminho pode ser mais longo: o paciente vai até o posto de saúde, relata dor, passa por sessões de fisioterapia, usa medicamentos, mas o desconforto não passa. Ele retorna e os profissionais o encaminham para um especialista, em uma AME (Ambulatório Médico de Especialidades), por exemplo, que vai seguir com o tratamento.
Com ausência de bons resultados, o paciente é encaminhando ao hospital de referência, que vai realizar uma série de terapias antes. Sem nenhuma melhora, aí sim o estimulador é indicado ao paciente.
Bernardo de Monaco, que também é médico colaborador da USP e já realizou implantes pela rede pública, explica que, de fato, o caminho é mais longo. “Mas a grande maioria, no final, não vai precisar do estimulador. É possível melhorar com esses tratamentos anteriores, que são feitos de forma rigorosa”, diz.
Fonte: Uol